quinta-feira, 24 de março de 2022

DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA COMO NA CINEMATOGRÁFICA

A obra de um autor pode e deve ser composta totalmente por infinitas variações sobre um só tema.

João Marchante

OUVIR COM OUVIDOS DE ESCUTAR OU DA MÚSICA COMO NO CINEMA

É necessário ouvir os álbuns do princípio ao fim, como quem lê um livro ou vê um filme, porque os discos são atravessados por um invisível fio-condutor que lhes dá o sentido pretendido pelo autor e que só será totalmente revelado no final da audição integral da obra.

João Marchante

DA ESTÉTICA DO CINEMA

Há poética no Cinema quando o espectador consegue ouvir as imagens e ver os sons.

João Marchante

DA SOBREVIVÊNCIA E COEXISTÊNCIA DAS DIVERSAS ARTES

Dizem que os discos têm os dias contados, porque as novas gerações saltam de música em música na rede.
Lembremo-nos de quando se afirmava que a televisão acabaria com o cinema e também da canção em que o vídeo matava a rádio. Para já não falar dos profetas que anunciaram o fim da pintura devido ao aparecimento da fotografia. Afinal, todas estas notícias eram manifestamente exageradas. 

João Marchante

SUGESTÕES DE SESSÕES DUPLAS PARA A PÁSCOA

1. Das Cabinet des Dr. Caligari (Alemanha, 1919) de Robert Wiene / Rumble Fish (EUA, 1983) de Francis Ford Coppola.
2.  
Metropolis (Alemanha, 1927) de Fritz Lang / Blade Runner (EUA, 1982) de Ridley Scott.
3. L'Atalante (França, 1934) de Jean Vigo / Les Amants du Pont-Neuf (França, 1991) de Leos Carax.
4. Outubro (URSS, 1927) de Sergei Eisenstein / A Arca Russa (Rússia, 2002) de Aleksandr Sokurov.
5. Un Chien Andalou (França, 1929) de Luis Buñuel e Salvador Dalí /  Blue Velvet (EUA, 1986) de David Lynch.
6. La Passion de Jeanne d'Arc (França, 1928) de Carl Theodor Dreyer / Ordet (Dinamarca, 1955) de Carl Theodor Dreyer.
7. Die Nibelungen: Siegfrieds Tod (Alemanha, 1924) de Fritz Lang / Die Nibelungen: Kriemhilds Rache (Alemanha, 1924) de Fritz Lang.
8. Berlin, Symphonie einer Großstadt (Alemanha, 1927) de Walter Ruttmann / Douro, Faina Fluvial (Portugal, 1931) de Manoel de Oliveira.
9. 
O Acto da Primavera (Portugal, 1963) de Manoel de Oliveira / The Passion of The Christ (EUA, 2004) de Mel Gibson.
10. 
Journal d'un Curé de Campagne (França, 1951) de Robert Bresson / Tokyo Monogatari (Japão, 1953) de Yasujiro Ozu.

João Marchante

CINEMA NACIONAL DE DIMENSÃO UNIVERSAL

Em 1953, ano em que apenas se produzem e estreiam cinco filmes em Portugal, anunciando assim uma tendência de empobrecimento, após os Anos de Ouro das décadas de 1930 e 1940, surge — como lufada de ar fresco e tiro no escuro — o melhor filme de sempre, da nossa cinematografia, sobre o Ultramar.


Chaimite, de Jorge Brum do Canto — autor maior da História do Cinema Português, completamente apagado nos dias de hoje pela historiografia oficial —, é a segunda longa-metragem nacional sobre a matéria. Facto estranho este, que confirma o inexplicável desinteresse dos nossos produtores pelo tema (que tem pano para mangas, aliás). É o primeiro filme da empresa de produção Cinal, dirigida pelo Professor Luís Pinto Coelho, que se caracteriza por películas de qualidade.

Jorge Brum do Canto atingiu, nesta obra, uma autenticidade nas reconstituições de época e militares, como nunca mais o nosso Cinema logrou alcançar. Se, no que diz respeito à imagem, ao som e à montagem, percebemos que estamos na presença de um esteta — Brum do Canto iniciou-se com a Geração de 1930, profundamente ligada à modernidade cultural portuguesa, onde também se perfilaram, como cinéfilos ou cineastas, Leitão de Barros, Cottinelli Telmo, António Lopes Ribeiro, Chianca de Garcia, Dr. Ricardo Jorge (médico, cinéfilo, escritor), João Ortigão Ramos, Dr. Félix Ribeiro (médico, cinéfilo, fundador e primeiro director da Cinemateca Portuguesa), Domingos Mascarenhas, e muitos outros, de igual calibre, que se constituíram como tertúlia cinematográfica no Cine-Teatro S. Luís (aberto em 1928) —, por outro lado, no que se refere à História, é um cineasta profundamente conhecedor do assunto abordado que avança para este arriscado registo épico de Chaimite.

O filme — na linha de Feitiço do Império (1940), de António Lopes Ribeiro — mostra o heróico esforço português para defender o Ultramar dos ataques estrangeiros — neste caso inglês, sendo assim premonitório das cobiças americana e soviética —, e não é, como muitas vezes erradamente se refere, uma fita contra a revolta vátua, nem, muito menos, contra a sua identidade enquanto povo. Digamos que é um filme pela positiva: eleva Portugal, respeitando os que se lhe opunham directamente; mas denuncia os ingleses, que pretendem levar os moçambicanos à revolta contra Portugal para alimentar os seus apetites imperiais.

Mouzinho de Albuquerque (interpretado por Jacinto Ramos) destaca-se como grande protagonista, herói e fio-condutor da narrativa, não apagando, note-se, os outros camaradas de armas — Caldas Xavier (Augusto Figueiredo) e Paiva Couceiro (o próprio Brum do Canto, num notável trabalho de actor).

É que este cineasta era o protótipo do artista-total: neste filme assina o argumento, os diálogos, a planificação, a realização, a montagem, e actua. Sabia-se ainda fazer rodear dos melhores: a demonstrá-lo encontramos na música Joly Braga Santos, e na fotografia — de belíssimos e ousados enquadramentos — César de Sá e Aurélio Rodrigues, para além de termos o Major Vassalo Pandayo como consultor militar.

A biografia de um criador contém, quase sempre, a chave para a sua Obra. Neste caso, a tradição familiar, em que Jorge Brum do Canto bebeu, revela-se fundamental. Nascido e criado numa família católica e monárquica — próxima da Família Real e amiga de Paiva Couceiro —, habituou-se a pensar pela sua própria cabeça — nunca se envolveu institucionalmente com o Estado Novo, embora dele fosse simpatizante — e foi um homem culto e livre. Sabemos que apreciava António Ferro, pelo projecto que este tinha para as Artes Nacionais, e, por sua vez, era admirado por Carmona.

Encontramos como tema principal do seu Cinema, nas suas próprias palavras, «a Terra e o Povo». Portugal e os Portugueses vão ser, assim, os protagonistas de uma filmografia que se esplana, entre 1929 e 1984, por 23 filmes — do vanguardista A Dança dos Paroxismos (1929) ao policial O Crime de Simão Bolandas (1984), passando por documentários e obras de ficção. Quem quiser encontrar a nação em toda a sua diversidade e plenitude, terá de ver A Canção da Terra (1938), Lobos da Serra (1942), Fátima, Terra de Fé (1943), Um Homem às Direitas (1945), e A Cruz de Ferro (1968).

Voltando a Chaimite: a acção desenrola-se, temporalmente, entre 1894, momento do ataque a Lourenço Marques pelos africanos, e 1897, altura em que Mouzinho, Comissário Régio de Moçambique, vence definitivamente os vátuas, derrotando Maguiguana, que tinha escapado durante a captura de Gungunhana. A fita alia este lado épico a um tom intimista, ao mostrar a Mulher de Mouzinho, presença discreta mas firme, verdadeira apoiante e companheira das empresas do herói. Paralelamente, o realizador dá-nos ainda uma história de amor entre um soldado e uma bela rapariga, com um final feliz. Cabe aqui destacar que Chaimite tem também valor como documento histórico para o estudo da vida colonial da época, que é retratada com verosimilhança e mestria, desde a da cidade até à do mato.

Para a «coisa militar», Brum do Canto baseou-se no livro A Guerra de África em 1895, de António Ennes, e em textos do próprio Mouzinho, o que assegura o rigor histórico-militar. Ainda no campo da autenticidade, é de realçar que os indígenas africanos falam nos seus dialectos próprios — muda a tribo, muda a língua —, criando assim um verdadeiro realismo, tão em voga nesses mesmos anos de 1950 noutras paragens. O difícil será, como neste caso, juntar, no mesmo filme, uma escala monumental, num registo de credível reconstituição histórica, a um intimismo de fino recorte humano. E, se termino falando na escala, é porque Chaimite atinge uma grandiosidade no tratamento do espaço e dos cenários, servindo o argumento na sua enorme dimensão épica, como nunca mais o Cinema Português — e, de um modo geral, a Arte Nacional — conseguiu fazer.

Saibam os jovens realizadores, activos em 2022, pôr os olhos em Chaimite, para se poderem aventurar em novas e belas criações, com som e imagens em movimento, nesta linguagem universal que o Cinema é — e que sai sempre enriquecida quando trata temas que dizem respeito aos Povos, como aqui bem se vê.

Veja-se, pois! 

João Marchante

O ÚLTIMO ROMÂNTICO DA SÉTIMA ARTE

Quem quiser compreender a razão de se chamar autor a um realizador de Cinema deverá mergulhar de cabeça na sereníssima e profunda obra de Eric Rohmer. Este grande mestre da Sétima Arte nasceu em França em 1920 e está mais vivo do que muitos rapazolas que para aí andam armados em artistas. De forma discreta, mas sábia e firme, exerce os ofícios de crítico, jornalista, argumentista, escritor e professor, para além da sua principal actividade como realizador.

Organizou parte da sua filmografia em ciclos. Assim, encontramos os seguintes: «Seis Contos Morais» (seis filmes, 1963 — 1972), «Comédias e Provérbios» (sete filmes, 1981 — 1987) e «Contos das Quatro Estações» (quatro filmes, 1990 — 1998).
Tem como principais temas da sua obra cinematográfica: os encontros e os desencontros, o desejo, os jogos de sedução, a dúvida da escolha, o exame de consciência, e a decisão; enfim, as relações humanas em toda a sua fascinante complexidade, encontrando sempre na palavra o fio-condutor.
Não temendo o peso que os ignorantes atribuem à expressão, podemos afirmar que Rohmer é o maior moralista do Cinema Moderno. A isto acrescentaríamos a sua característica (outros a têm também) de ser um cineasta coleccionador de mulheres, ou, personagens femininas, se preferirem assim. Chamemos-lhe ainda cineasta-retratista, pois revela, através da fotogenia dos corpos e dos rostos — muito particularmente dos olhares —, a alma das suas personagens. Poder alquímico, este, só na posse dos verdadeiros retratistas.
Rohmer é um realizador do tempo e do espaço. Trata-os, com mestria, utilizando uma montagem mínima e subtis movimentos de câmara. O seu sistema narrativo tem por base uma estrutura herdada das convenções teatrais: a sua escrita organiza-se por actos, e as suas cenas são longas — como na vida, sem cortes; domina os diálogos, imprimindo-lhes um profundo cunho verista, e recorre à figura do narrador. O seu sábio conhecimento da História da Pintura transparece na imagem dos seus filmes — nos enquadramentos e nas composições, e nos ambientes. O estilo visual e sonoro é claramente naturalista; o que poderia, aliás, ser a palavra-chave para a sua estética e constitui, sem dúvida, a sua principal marca autoral.
Foi chefe de redacção dos Cahiers du Cinéma; e, nessa categoria e na de crítico da revista, revelou-se decisivo para a criação da «teoria do autor», que ele próprio viria a encarnar como ninguém. Escreveu, entre muitos outros textos teóricos — sobre Dreyer, Hitchcock, Rossellini, etc. —, uma fundamental tese sobre «A organização do espaço no Fausto de Murnau», com este mesmo título.
Por outro lado, como isto não é nenhuma tese, mas um conjunto de notas soltas que para aqui estou a alinhar* acabadinho de chegar da Cinemateca Portuguesa, vindo de ver o seu delicioso Pauline à la Plage (1982), apetece-me concluir chamando a Eric Rohmer: subtil, natural, alegre, irónico, melancólico, romântico e espiritual. E não é pouco. Eu, por exemplo, quando for grande também quero ser assim.
João Marchante
*Texto que escrevi originalmente no blogue Eternas Saudades do Futuro numa entrada de 28 de Setembro de 2007.

SUSPENSE

Alfred Hitchcock (1899 — 1980) nasce em Londres. Sendo, pois, à partida, um homem directamente herdeiro do espírito vitoriano do século XIX, revela, no entanto, um extraordinário sentido de utilização dos modernos meios de marketing e publicidade (antecipando-os), para divulgar as suas obras. Cedo irá transformar em marca icónica o seu nome, tornando-o reconhecível e apetecível para toda a comunidade mundial de cinéfilos, e, mesmo, para os grandes e despersonalizados públicos generalistas. Revela-se, ainda, e dentro desta estratégia de comunicação global, um especialista nas relações públicas; especialmente com a imprensa, com o objectivo de se promover profissionalmente.


Dito isto, há que afirmar, de imediato, que toda esta comunicação eficaz era apenas a ponta-de-lança de uma obra complexa e profunda. Vamos a ela, que é o fulcro da questão!

Hitchcock, oriundo de uma família de classe média-baixa, é instruído pelos jesuítas. Se refiro este facto é porque os seus filmes virão a reflectir uma série de conhecimentos que terá assimilado nos seus estudos feitos numa escola católica destes, bem conhecidos pela vasta cultura que forneciam; terá, também, através dos referidos jesuítas, tomado contacto com G. K. Chesterton (1874 — 1936), que lerá entusiasmado na juventude. Outras influências literárias que o marcaram, mais tarde, como erudito auto-didacta que era, foram Edgar Allan Poe (1809 — 1849) e Oscar Wilde (1854 — 1900).

Por outro lado, devorava jornais e lia revistas de criminologia e de cinema. Curioso é constatar o casamento entre estas fontes de inspiração para o seu despertar como autor de filmes. Os seus temas serão, principalmente, os seguintes: falsos culpados, assassínios, trocas de identidade, medo, voyeurismo, paixões frias mas arrebatadoras.

Porém, antes de chegar à realização de fitas, começa por desenhar intertítulos para filmes mudos, escrever argumentos e trabalhar como assistente de realização. Esta conjugação, de conhecimento prático da técnica cinematográfica com a cultura que ia adquirindo pela leitura, possibilita uma mestria na criação das suas narrativas fílmicas, apimentadas com o tão apregoado suspense.

Na sétima arte, Hitch (gostava de ser assim tratado) bebeu de várias fontes: Fritz Lang (1890 — 1976) e F. W. Murnau (1888 — 1931) — esses dois mestres do mudo alemão — foram determinantes para a estruturação da sua linguagem estética. Esteve na UFA — os grandes estúdios de Berlim — e conheceu-os pessoalmente. Lá trabalhou e lá filmou. Esta marca será visível, claramente, nos seus filmes mudos; e, mais subtilmente, nos sonoros.

O seu género eleito será o melodrama policial, pontuado de fantástico e de mistério. Esbate, pois, assim, as fronteiras de vários géneros convencionais, criando uma abordagem própria, com elementos retirados de todos eles.

No que toca à realização, o seu estilo é essencialmente visual, dando-nos a sensação de que aquelas histórias só fazem sentido em cinema; ou seja, por escrito não teriam o mesmo impacto. Sabia de tal forma o que queria que a montagem das suas películas seguia ao milímetro o que ele próprio tinha definido na planificação (última fase do argumento, em que este fica pronto a ser filmado). A esta atitude chama-se trabalhar com «guião de ferro». Hitch dizia que o acto de rodar era uma maçada, pois já sabia exactamente como seria o filme ao tê-lo definido na planificação. Esta ideia traduz uma inabalável confiança do cineasta em si próprio, enquanto director de actores, e uma invulgar capacidade de visualização.

Hitchcock assentava a sua estética numa cumplicidade com o espectador. Dava-lhe alguns conhecimentos secretos sobre a acção, mantendo-o ansioso pelo desfecho da narrativa. Esta tensão psicológica pode até levar o espectador a querer comunicar com a personagem ameaçada na tela, para a avisar do perigo... Eis a força manipuladora do suspense.

Não havendo, no entanto, técnica que resista à falta de ideias, é preciso deixar bem explícito que o cinema de Hitch assenta em temas fortes, já atrás referidos. Recapitulando, e desenvolvendo: culpa — com o inocente falso culpado como fio-condutor da narrativa, entrando aqui, por vezes, a troca de identidades; medo — pontuado pelo susto, e nas margens do terror; desejo — com simbologia e alegorias sexuais; ansiedade — mantida pelo suspensevoyeurismo — peeping-tom, em bom inglês, espreitando e violando a esfera privada e íntima; autoridade — que assegura a investigação criminal, mas também pode ser desafiada (detestava polícias vulgares, de «ronda»); morte — sob a forma de assassínio, o crime mais grave, e que os espectadores, morbidamente, gostam de ver no recatado conforto da sala escura. Todos eles temas de identificação e projecção psicológica do espectador. Eis o cinema, na sua mais poderosa forma alquímica, servido pela mão do mestre Hitchcock.

Importante é vencer o medo, esperar para ver o desfecho, e perceber que a chave dos seus filmes é o triunfo final da luz sobre as trevas. Toda a obra é uma variação sobre este grande tema.

E, se não menciono um único filme do realizador, a justificação é simples: devem ser vistos todos, cronologicamente — dos mudos aos sonoros, dos ingleses aos americanos, dos filmados a preto-e-branco aos rodados a cores —, com o objectivo de se conseguir captar, na plenitude, agora em 2022 mais do que nunca, toda a complexa temática, e todo o estilo visual e sonoro profundo; enfim, todas as suas indeléveis marcas autorais. 

João Marchante

FADO FILMADO E CINEMA CANTADO

Em Portugal, no ano de 1947, entre as sete longas-metragens produzidas, surge Fado, História d’Uma Cantadeira, que, dez anos depois, virá a ser o primeiro filme exibido pela Televisão Portuguesa, no arranque da RTP.


O seu realizador é Perdigão Queiroga, nascido em Évora, em 1916, e morto fisicamente num acidente de automóvel, em 1980. Este cineasta, depois de uma fase de aprendizagem das técnicas cinematográficas, trabalha como profissional nas áreas da imagem e da montagem. De seguida, em plena II Guerra Mundial, e Golden Age do Cinema Americano, ruma a Hollywood — para os estúdios da major Paramount (uma das cinco maiores empresas de produção cinematográfica dos E. U. A.) —, onde trabalha em montagem. De regresso à Pátria, inicia a preparação de Fado, que será o seu primeiro filme de fundo, numa obra com dezenas de títulos.

A sua filmografia divide-se, como era hábito nos autores clássicos completos, entre documentários (a que hoje chamaríamos «institucionais») e longas-metragens de ficção. Outro ponto alto da sua carreira viria a ser As Pupilas do Senhor Reitor (1961), a partir de Júlio Diniz, e que foi o primeiro filme nacional rodado em cinemascope (formato de ecrã largo).

Mas vamos ao nosso Fado, História d’Uma Cantadeira (1947), de Perdigão Queiroga, que a isso viemos e nisso estamos. Este filme baseia-se, muito livremente, na biografia da grande Amália Rodrigues, então no auge da sua carreira e beleza. Será esta formidável «cantadeira» a protagonizar a fita, com a qual iluminará a tela, como estrela deste melodrama romântico. Para que a musa lusa brilhe, em toda a sua plenitude, muito ajudarão os belíssimos fados de Frederico de Freitas, as letras de Amadeu do Vale, Linhares Barbosa, Gabriel de Oliveira e João Mota, as «sínteses de fados» de Frederico Valério e Jaime Santos, os versos de Silva Tavares e José Galhardo; e, toda esta equipa de luxo, sob a direcção musical de Jaime Mendes.

Abordemos então agora a história, propriamente dita: os cânones do melodrama, herdados — pelo Cinema — da Literatura e do Teatro do século XIX, estão lá todos; e, de uma forma não muito diferente daquela como eram praticados, à época, em Hollywood, mas convenientemente transpostos para a realidade social da Lisboa dos anos 40 do século passado, como se pretende.

Assim, temos uma fadista pobre de Alfama, com um namorado (o guitarrista Júlio — interpretado convincentemente pelo grande Virgílio Teixeira), que, tornando-se famosa, sai do seu bairro, abandonando o apaixonado companheiro e trocando-o pelos círculos da alta-burguesia e da aristocracia de Lisboa. Por fim, depois de peripécias várias, numa trama narrativa bem urdida, temos um final na boa tradição do happy end da Capital do Cinema. Se destaco esta ligação ao cinema clássico narrativo sonoro, que tinha as suas regras ditadas pelos norte-americanos, é porque o filme tem uma desenvoltura própria dos melhores produtos saídos dessas «fábricas de sonhos» que eram os Estúdios de Hollywood.

Perdigão Queiroga junta-lhe ainda os principais ingredientes da Cultura Popular Portuguesa — olhada por alguns arrivistas com desconfiança, pois talvez lhes faça lembrar o berço que renegam —, e, assim, conseguiu fazer um filme que é um dos maiores êxitos de bilheteira — até hoje — do Cinema Português, ao mesmo tempo que recebeu críticas muitíssimo positivas; conjugação esta não habitual. Capas Negras, de Armando de Miranda, desse mesmo ano e também com Amália, foi demolido pela crítica, e com toda a razão, devido ao cinema pobrezinho que revelava.

Neste caso — no nosso Fado —, o pano de fundo de carácter realista com que são pintados os bairros tradicionais de Lisboa, a excepcional representação do galã português de dimensão internacional — Virgílio Teixeira —, o rosto, a voz, e a naturalidade expressiva de Amália, o rigor fotográfico de Francesco Izzarelli, a fluidez da montagem do próprio Perdigão Queiroga — em «estilo invisível», à maneira de Hollywood —, as presenças de António Silva, Vasco Santana, Eugénio Salvador, Tony d’Algy, Raul de Carvalho, e mais uma mão cheia de outros grandes actores, fizeram toda a diferença.

Convém aqui realçar que o Fado e os Toiros são dois mitos permanentes da iconografia nacional; e, se convenientemente levados para a Cinematografia Portuguesa — com um tratamento narrativo e plástico sempre renovado, de acordo com o espírito dos tempos —, podem constituir-se como uma das matrizes estruturais de um verdadeiro género indígena. Os E. U. A. fazem exactamente o mesmo com os seus géneros: WesternGangstersMusical. Esta linha do Cinema Português foi, aliás, logo consagrada no primeiro filme sonoro (sonorizado, no entanto, ainda, em França): Severa, de Leitão de Barros.

Em relação a Fado, História d’Uma Cantadeira, diga-se que o Estado Novo — através do SNI, de António Ferro — pareceu gostar a atribuiu-lhe o Grande Prémio, nesse ano de 1947, demarcando-se, deste modo, de Capas Negras, que, apesar de tudo, teve um maior sucesso de bilheteira na época (e mesmo, também, um dos maiores de sempre, até à actualidade).

De facto, António Ferro, com o seu inovador bom-gosto, sabia o que fazia ao distinguir este filme, pois Fado tem tudo: por um lado, uma extraordinária beleza plástica — esse rosto de Amália nada fica a dever aos de outras divas do Cinema Mundial, muito graças ao já referido director de fotografia italiano, que tinha trabalhado no Camões, de Leitão de Barros, e que tem um estilo visual a fazer lembrar o expressionismo alemão; por outro, a banda sonora, já convenientemente aqui destacada, que reunia os melhores autores da música popular portuguesa de então. Finalmente, os diálogos — esse ponto fraco da Cinematografia Nacional — são convincentes e vivos, e ditos com boa dicção, e ainda melhor interpretação, depois de saídos da pena criativa de Armando Vieira Pinto.

E agora vou mas é rever a fita, que fiquei cheio de vontade, e esperar — pessimista, mas esperançoso que sou — que o Cinema Português se reconcilie com o seu público e possa voltar a erguer produções desta dimensão, para que, como neste caso, não abdicando da requintada expressão estética do autor, possa servir, com narrativas escorreitas e simples, temas onde as pessoas realmente se revejam, pois já basta de décadas de divagações umbiguistas, em tom hermético, para consumo próprio (com honrosas excepções, apesar de tudo).

Bem sei que agora, em 2022, já não temos Amália, aqui e ao vivo, nem Virgílio Teixeira — e que falta fazem! —, mas há por cá novos e bons actores — potenciais novas estrelas! Estarão os actores portugueses para sempre fadados a fazer telenovelas em manhoso estilo sul-americano, ou poderão voltar a brilhar em Filmes Portugueses populares e de qualidade?...

João Marchante

DO FUTURO DO CINEMA PORTUGUÊS

Um País que não tenha uma Cinematografia própria, reconhecida de imediato a olho nu pelos cinéfilos do mundo inteiro através das suas marcas identitárias, não tem futuro. Não se trata de filmar o folclore e de registar as belas paisagens — a publicidade (institucional e comercial) tomou conta desse departamento, para vender o seu peixe, e até o faz bem.


O que quero dizer com isto é que Portugal precisa de fazer um Cinema com uma linguagem autêntica, que corresponda de facto ao modo de pensar e sentir dos Portugueses. O teste parece-me fácil: se o público gostar é porque os filmes são genuínos. Este tornou-se, aliás, o principal problema; as pessoas andam zangadas com os filmes portugueses. Como às vezes sucede na vida, até se zangam com o que desconhecem; mas, cheira-lhes que nem vale a pena espreitar. E — atente-se —, o povo é sábio nos seus instintos, por mais ignorante que possa parecer e — hoje, infelizmente — ser.

O Cinema é uma necessidade cultural do século XXI, como já tinha sido, também, durante todo o século XX — ou, pelo menos, desde que criou, para si próprio, as bases estéticas para se exprimir de forma autónoma em relação às outras Artes (esse nascimento da linguagem cinematográfica deu-se com Griffith, em 1915). Portanto, se um País não for capaz de criar produtos no domínio da maior indústria cultural conhecida, é lícito afirmar-se que está a abrir uma brecha para a entrada de filmes estrangeiros que venham ocupar esse espaço. Não há aqui qualquer nostalgia do tipo «patriotismo da sardinha assada», que, desde sempre, me repugna. Há, isso sim, a consciência de que um Povo só tem futuro se existir culturalmente, e que, sendo o Cinema a maior e mais moderna forma de expressão artística, quem não tem filmes, a que possa chamar seus, é como quem não tem Língua.

Os filmes de uma Cinematografia Nacional reconhecem-se de imediato. Todos nos quedamos fascinados perante o Cinema Clássico Americano (o das décadas de 1930 e 1940), como certamente admiramos — os que o conhecemos… — o Cinema Mudo Alemão e Russo, ou, ainda, nos identificamos com o Cinema Moderno Italiano e Francês, para só falar dos exemplos mais divulgados da História do Cinema.

A estas fitas associamos rostos e corpos — as «estrelas» (do que os americanos chamaram «Star System»). Reside aqui uma lacuna nacional a superar urgentemente: o Cinema Português precisa de novas estrelas, como de pão para a boca. São elas que alimentam os sonhos dos espectadores na sala escura, através de processos de identificação ou negação, amor ou ódio, fascínio ou repulsa (sem entrar em tretas psicanalíticas, que só servem par esvaziar de magia e sensualidade personagens e pessoas). Certo, certinho, é que sem o brilho das estrelas o Cinema não cativa. Uma estrela é mais do que um bom actor. Tem aquele «não sei o quê» que só o espectador, no seu íntimo, sabe reconhecer; e, primeiro do que ele, o realizador — a quem cabe a tarefa de descobrir, revelar e lançar esses seres únicos. Apesar de tudo, Portugal teve já as suas «divas» do celulóide.

Outro aspecto fundamental a não perder de vista são as histórias que estão na base dos filmes. Tecnicamente designados por argumentos ou guiões — após a sua passagem para linguagem cinematográfica —, é nestes que reside o segredo do sucesso das películas.

A propósito, ocorre-me dizer o seguinte: «Pela boca morre o peixe»; isto é, podemos ter uma iluminação magnífica, belos enquadramentos, actores irrepreensíveis, e tudo o mais; mas, se os diálogos forem ridículos — sabem do que estou a falar… —, a fita não tem pernas para andar.

Antes de chegar aos diálogos, no entanto, o tropeção pode ainda dar-se numa outra fase — na história, propriamente dita (aproveito a ocasião para perguntar se alguém sabe porque carga de água é que ultimamente aparece história impropriamente escrita?...). Esta, pode ser baseada numa obra literária (falando-se, assim, em adaptação), ou escrita de raiz (argumento original). Aqui, é obrigatório ter a noção de que escrever para Cinema não é o mesmo do que escrever um livro ou ser-se jornalista… Há toda uma técnica que urge aprender e dominar. Graças a Deus, temos bons exemplos portugueses para estudar.

Se o Cinema é a Arte da repetição (mas essa é outra conversa), aproveito para deixar aqui mais um dito que anda na boca do nosso povo há anos, e que reza mais ou menos assim: «Tendo nós novecentos anos de História, com tantas histórias, porque é que não retiramos daí inspiração para criarmos argumentos para os nossos filmes?». Pois… Não sei, ou prefiro não saber. Mas, é fácil de perceber que a vida de Dom Afonso Henriques daria uma extraordinária longa-metragem, com todos os ingredientes de que os espectadores gostam: um herói, acção, aventuras, perseguições, sexo, amor, batalhas, viagens, paisagens, mistério, segredos, traição, ódio, sangue, e por aí fora… Já que estamos lançados, aproveito para lembrar que todo e qualquer um dos nossos Reis daria um filme de fundo bom em qualquer parte do planeta. Não é exagero, é uma convicção formada no visionamento e análise de centenas de filmes históricos. Um possível slogan para estas películas de época seria: «Oitocentos anos de Monarquia são a nossa garantia».

Pelo meio — entre as histórias, que se escrevem e planificam a fim de passarem a imagens em movimento com som e tudo, e as estrelas, também já nossas conhecidas, que brilham na tela — ficam os recursos técnicos de várias áreas estéticas: imagem, som, montagem, direcção artística (cenários e guarda-roupa). Nestas matérias, não julgo haver problemas de maior. Afinal, temos dos melhores profissionais do mundo nestes ofícios artísticos. Bem sei que alguns andam lá por fora a lutar pela vida, mas talvez regressem para ajudar a criar, definitivamente, uma Indústria de Cinema em Portugal. Havendo mercado, haverá dinheiro e remuneração condigna para quem a merece.

Falemos então agora de mercado, palavra que aparentemente não cola com Arte. Mas se não casar é que é o diabo, pois a Arte ficará solitária e estéril… É chegada a hora de deitar fora todos os preconceitos contra a relação dos filmes com o público. As fitas só têm razão de ser na medida em que comuniquem com as pessoas e que estas se revejam nas películas. Tudo isto pode — e deve — ser feito sem cedências de carácter artístico. Um bom filme deve ser fruído por toda a gente (note-se que o público não é uma massa e é composto por indivíduos de culturas e sensibilidades distintas), com prazer e proveito, à medida dos seus apetites estéticos, ou, simplesmente, lúdicos.

Entendamo-nos: os mais simples contentar-se-ão com a superfície do filme, os mais atentos mergulharão na história, e os mais exigentes tirarão as suas próprias conclusões. As grandes fitas estão assim construídas. São feitas a pensar em todos, mas à medida das necessidades e capacidades culturais de cada um.

É tudo tão simples que quando oiço para aí certos pequenos e médios intelectuais da nossa praça a escreverem palavras extraordinárias sobre Cinema, que só servem para complicar o que é claro como a água límpida, até me arrepio todo.
Finalmente, guardei ainda um pouco de tinta para falar de financiamentos. Embora Portugal tenha hoje — mais do que nunca — uma burguesia burgessa, inculta, e pouco dada a investimentos culturais (salvas raríssimas e honrosas excepções), é aí — apesar de tudo — que reside a esperança para um salto de escala da produção nacional. Os cineastas do futuro terão de libertar-se dos subsídios, e começar a pensar na preparação dos seus projectos com outras mais saudáveis engenharias financeiras. Todas as grandes Cinematografias estrangeiras (tirando a Soviética) se edificaram sobre uma estrutura económico-financeira empresarial privada. Já tinham reparado nisso?

E, por aqui me fico, antes que ofenda alguma alma mais sensível de algum confrade cinéfilo...

Apesar de todo o meu desgosto, atrás expresso, em relação ao actual panorama do Cinema Português neste ano de 2013 (sendo sério, não poderia ter dito outra coisa), a minha esperança é muito maior do que o meu pessimismo e acredito no surgimento, no século XXI, de uma Indústria de Cinema em Portugal (feita por portugueses, mas aberta às co-produções lusófonas e europeias) capaz de produzir obras suficientes, em qualidade e quantidade, para serem exportadas para o planeta inteiro, superando barreiras linguísticas com boas traduções e legendagens, e, especialmente, tratando assuntos que cativem os públicos mundiais pela sua originalidade e identidade.

Em frente, Cineastas do meu País!

João Marchante

AMOR À ARTE

António Lopes Ribeiro (Lisboa, 1908 — Lisboa, 1995) é cineasta, jornalista e crítico de Cinema. Entenda-se aqui a palavra cineasta na sua acepção total: Lopes Ribeiro foi realizador, argumentista, produtor, director artístico e montador. Temos, assim, um homem que respira Cinema.

Estudou engenharia no Instituto Superior Técnico, mas logo o abandonou, em 1929, para se entregar à Sétima Arte a tempo inteiro.

Nos anos 20, dedica-se ao jornalismo; e, estreia-se na crítica cinematográfica no Diário de Lisboa com uma página própria, «Arte Cinematográfica — O Claro-Escuro Animado», onde usa as iniciais A. R. e o pseudónimo Retardador, a partir de 1927; esta rubrica terá sido a primeira — em todo o Mundo — dedicada exclusivamente ao Cinema num jornal diário. De seguida, funda e dirige as revistas especializadas Imagem (1928), Kino (1930) e Animatógrafo (1933). Colabora ainda, ao longo de toda a sua longa vida, nas seguintes publicações, entre outras: A BolaDiário PopularCine-JornalA Revista de Portugal e A Rua.

Inicia-se como realizador, em 1928 — aos 20 anos de idade —, com o documentário artístico Bailando ao Sol. Lança-se, a partir daí, numa carreira que terá mais de 100 títulos e que só será interrompida — à força! — em 1974. Nessa vasta Obra, encontramos documentários, adaptações literárias, dramas, e comédias. O arranque da sua actividade cinematográfica encontra-se fortemente enraizado nos conhecimentos técnicos que adquiriu em visitas aos estúdios alemães e russos (um bom exemplo do amor à arte e à estética quebrando fronteiras políticas e ideológicas).

Foi, enquanto teórico, um apologista do Cinema Sonoro, contrariando muitos dos seus camaradas de ofício da época, que viam no Sonoro um desvirtuar do Cinema como forma de expressão artística, pois passaria a ser — segundo eles — um mero meio de reprodução da realidade. Lopes Ribeiro viu, antes de todos, que o Som — se bem utilizado — poderia ajudar o Cinema a crescer como Arte. Assim foi.

Os seus documentários são, na sua maior parte, encomendas do Estado Novo, através de vários Organismos. Mostrar-se-á, neste domínio, um Autor rigoroso, do ponto-de-vista histórico, e com um fino sentido estético. Destacaria, nesta área, os seguintes documentários: A Exposição do Mundo Português (1941), Inauguração do Estádio Nacional (1944), A Morte e a Vida do Engenheiro Duarte Pacheco (1944), O Cortejo Histórico de Lisboa (1947), Jubileu de Salazar (1953), Rainha Isabel II em Portugal (1957). Se quisermos conhecer a História de Portugal do Século XX, teremos de vê-los a todos — dezenas de títulos, de semelhante nível técnico-artístico e igual valor histórico, repartidos entre curtas-metragens e longas-metragens documentais. Um olissipógrafo que se preze deverá visionar os seus documentários sobre Lisboa, antes de escrever o que quer que seja sobre a antiga Capital do Império.

Quanto ao Cinema de ficção, Lopes Ribeiro saberá integrar muito bem nas suas equipas um conjunto de luxo de técnicos provenientes da Alemanha, e assegurar, desta forma, um sentido visual apurado — na luz, nos enquadramentos, e nos movimentos de câmara — nos seus filmes. A sua primeira longa-metragen de ficção — Gado Bravo (1934) — irá logo deixar bem à vista do público essas marcas. Note-se que a propósito desta fita rodou um documentário («making-of», no vocabulário técnico de hoje; coisa inédita à época).

António Ferro — que sabia, como ninguém, detectar talentos — vai desafiá-lo a rodar uma película sobre a Revolução Nacional de 28 de Maio de 1926, a fim de Comemorar os seus 10 anos. O argumento é escrito por António Lopes Ribeiro e pelo próprio António Ferro (com os pseudónimos de Baltazar Fernandes e Jorge Afonso, respectivamente) e terá a produção assegurada pelo Secretariado de Propaganda Nacional. Sobre esta fita — A Revolução de Maio (1937) —, não resisto a relembrar aqui o sucedido, há uns anos, quando algum «especialista» de programação da RTP decidiu exibir este filme, no 1.º de Maio, julgando tratar-se de uma película panegírica da data...! Ia caindo o Carmo e a Trindade!...

A partir de 1938, na sua nova responsabilidade de director artístico da Missão Cinegráfica às Colónias de África, visita e trabalha — supervisionando e dirigindo produções — nas Províncias Ultramarinas. Resultante desta aproximação a África, surge Feitiço do Império (1940); ainda hoje um filme de grande escala e enredo cativante, e a necessitar de urgente reposição para que as novas gerações digam de sua justiça.

Em 1941, cria as Produções Lopes Ribeiro, com o objectivo de produzir longas-metragens de ficção, ou filmes de fundo, entre os quais temos a nata do Cinematografia Portuguesa do Século XX: O Pátio das Cantigas (1942), de Francisco Ribeiro (seu irmão «Ribeirinho»); Aniki-Bóbó (1942), de Manoel de Oliveira; Camões (1946), de Leitão de Barros; para além de todas as Comédias Portuguesas que iluminaram a Época de Ouro do Cinema Nacional.

Para podermos avaliar convenientemente a genialidade heterodoxa deste Autor, esplanada em géneros cinematográficos tão distintos, basta referir O Pai Tirano (1941), que representa um certo paradigma da Comédia Portuguesa, e Amor de Perdição (1943), exemplo perfeito de como se pode obter êxito comercial com adaptações de qualidade de clássicos da Literatura Portuguesa.

Toda esta Obra Cinematográfica foi construída a par de uma outra carreira como Homem de Teatro. Fundou a Companhia «Os Comediantes de Lisboa», que actuou sucessivamente no Teatro da Trindade, no Teatro Avenida, e no Teatro Apolo; e, em 1952, fundou o «Teatro do Povo», que levou à cena desde Gil Vicente até peças da sua própria autoria.

Numa outra frente, traduziu Tchekov, Maeterlinck, Pagnol, Maugham e Giradoux, entre outros.

Como escritor, publicou O Livro de Aventuras (1939) e O Livro das Histórias (1940) — colectâneas de sonetos e poemas; editou ainda as várias compilações das suas crónicas, destacando-se: Esta Pressa de Agora (1962), Anti-Coisas & Tele-Coisas (1963) e Belas-Artes & Malas-Artes (1964).

Na televisão, ficou na memória de várias gerações de famílias portuguesas com o seu programa semanal Museu do Cinema, fazendo dupla com o famoso pianista «mudo» António Melo, entre 1957 (ano de fundação da RTP) e 1974 (ano do não desejado fim da sua brilhante carreira).

Homens destes já não existem hoje, em 2019. Saibamos merecê-los; e, para isso, comecemos por conhecê-los. 

João Marchante

ALEGRIA DE VIVER

Em Dezembro de 1932, iniciaram-se os trabalhos de edificação do estúdio cinematográfico da Tobis, na Quinta das Conchas, ao Lumiar, em Lisboa. No início do ano, tinha sido dado o arranque para a Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klang Film, que se constituiu formalmente em Junho de 1932. Este nome ficou a dever-se à casa-mãe alemã (Tobis, abreviatura de Tonbild SyndiKat), por ter sido esta a fornecer-lhe a aparelhagem técnica. Lisboa e Berlim surgem assim de mãos dadas, para o advento do Cinema Sonoro em Portugal.


O então jovem arquitecto Cottinelli Telmo desenha e orienta a construção do estúdio, num radical projecto de fino recorte moderno e funcional, em articulação com a bela paisagem envolvente. José Ângelo Cottinelli Telmo nasceu em Lisboa, em Novembro de 1897, e viria a morrer num trágico acidente de pesca desportiva na Praia do Guincho, sportsman que era, em 1948. Filho de músicos, entra em 1915 para as Belas-Artes de Lisboa, a fim de cursar Arquitectura. Antes de aí se licenciar, em 1920, Cottinelli participa nas animadas tertúlias do Chiado, onde convive com os «novos», virando as costas ao academismo passadista da escola. Dessas relações sairiam, por exemplo, trabalhos para bailados (com Almada Negreiros), bandas desenhadas (para o ABC), décors de filmes de Leitão de Barros, e etc. e tal. Revelou-se, ainda, como actor e compositor, nas festas de estudantes de Belas-Artes. Como arquitecto, constrói alguns dos primeiros edifícios modernistas de Lisboa: Stand da FIAT (Av.da Liberdade, 1926-1929); Estação Fluvial do Terreiro do Paço (1928-1932); e, finalmente, a nossa Tobis. Carreira esta que atingiria o apogeu com a sua nomeação para arquitecto-chefe da Exposição do Mundo Português, em 1940.

Foi, por esta altura, o principal colaborador de Duarte Pacheco (se este não tivesse morrido em 1943, Cottinelli em 1948, e Ferro em 1956, a História das Artes e dos Espectáculos, no Século XX, em Portugal, teria cantado mais alto… mas, essa é outra história… fica para a próxima).

A Tobis só ficou concluída no ano de 1934. No entanto, antes disso, Portugal vai ter o seu primeiro filme sonoro rodado aí, num plateau improvisado. Ao mesmo tempo que orienta a construção do estúdio, que, no local, era dirigida pelo francês A. P. Richard, Telmo escrevia e realizava A Canção de Lisboa, tendo como conselheiro técnico Chianca de Garcia, outro dos grandes entusiastas da Tobis, desde a primeira hora, a par de Cottinelli Telmo e Leitão de Barros.
 
A Canção de Lisboa (Portugal, 1933) surge, pois, como fruto da gente nova, formada na cinefilia, no culto das Artes, e no bom-gosto. Se esta nova geração está pronta, e as infra-estruturas lançadas no terreno, faltavam ainda técnicos e actores para dar corpo ao primeiro filme sonoro totalmente feito (rodado e sonorizado) em Portugal.

Olhando com atenção para a ficha técnica (hábito perdido nos apressados dias de hoje, onde nos servem ao domicílio os filmes amputados dessa parte), descobrimos toda a fina-flor da Arte Portuguesa de então. O próprio genérico é de Almada Negreiros, que desenha também os dois cartazes do filme; o pintor Carlos Botelho é assistente de realização; José Galhardo escreve os inesquecíveis diálogos e as letras das canções, que passam de pais para filhos há exactamente oitenta anos; encontramos um trio de luxo na fotografia — Henri Barreyre, Octávio Bobone e César de Sá; o «russo branco» — vindo do Cinema Mudo Russo (pré-soviético; pois não foram os comunistas que lá inventaram o Cinema, como alguns parecem pensar) — Chakatonny; o engenheiro Paulo de Brito Aranha na direcção de som (cargo que iria manter na Tobis, por largos anos); o poeta José Gomes Ferreira — esse mesmo! — na assistência de montagem; Raul Ferrão e Raul Portela na autoria da música das canções; e, por aí fora…

Os actores constituem um elenco «de se lhe tirar o chapéu»: Vasco Santana, Beatriz Costa, António Silva, Teresa Gomes, Álvaro de Almeida, Manuel Santos Carvalho, e o jovem realizador Manoel de Oliveira, numa breve aparição como o galã, bon-vivant (que, de facto, era) e fiel amigo, Carlos, do desgraçado Vasquinho (Vasco Santana).

A articulação entre as equipas técnica e artística contou com a preciosa colaboração de técnicos profissionais vindos, essencialmente, da Alemanha e de França: Hans-Christof Wolhrab, Tonka Taldy, Jeanette Pakon, para além dos já nomeados anteriormente.

Sinal dos tempos, é de referir que Beatriz Costa saía de uma peça de teatro de revista, em cena na altura, onde era cabeça de cartaz, às duas horas da manhã, e apresentava-se às sete horas, da mesma manhã, na Tobis, impecavelmente maquilhada, à espera da ordem: «Acção!».

Por tudo isto, estamos perante um filme fundador: não só do Cinema Sonoro Português, mas do género fílmico da Comédia Portuguesa. Até hoje, tudo o que se tenta fazer, neste domínio, continua a ter como referência e influência A Canção de Lisboa.

Não vamos contar aqui a história da fita, pois ela está gravada na memória colectiva das famílias da nossa Terra. Parece-me é ser importante, para os intelectuais desconfiados do género cómico, lembrar que, à época, também René Clair e Jean Renoir o praticavam, na Europa; e, vendo a nossa Canção ao lado dessas películas, percebemos que o Cinema Português esteve alinhado com o «espírito do tempo» e conseguiu — simultaneamente — ser espelho da comunidade lisboeta, em todos os seus detalhes de puzzle social complexo, por de trás de uma aparente simplicidade brejeira.

Não basta, de facto, olhar. É preciso ver. E, para isso, há que lavar os olhos entre dois olhares, libertando-os de preconceitos aviados em estilo erudito por certos escribas da nossa praça que conseguem descortinar maravilhas nos mais obscuros objectos (antes fosse o do Buñuel) e cegar perante a luminosidade d’A Canção de Lisboa.

Alguns cépticos perguntarão ainda: «Mas o que é que a fita tem?». Tem uma história bem contada — o estudante de Medicina, apaixonado pela costureirinha do bairro, filha de um «pai tirano», surpreendido pelas velhas tias tontas, mas ricas, e provincianas —, diálogos de extraordinário ritmo — ditos com irrepreensível dicção, e cheios de segundos sentidos e trocadilhos —, actores que representam com alegria e vivacidade, uma bela estrutura musical, o fado, o lirismo, os sentimentos — sem ser sentimentalista —, as piadas, a psicologia do Povo Português (Lisboa como síntese da Alma Nacional) apresentada com naturalidade e com subtil — quase invisível — profundidade.

Tão simples… e, porém, tão difícil de fazer, com o mesmo bom gosto, de novo! 

João Marchante

AINDA E SEMPRE LISBOA NA SÉTIMA ARTE

Em 1 de Abril de 1930, estreia simultaneamente no São Luiz e no Tivoli (parece mentira, mas é verdade; bons tempos!), Lisboa, Crónica Anedótica, de Leitão de Barros. Este cineasta tem como marca principal um apurado sentido estético, partilhado com a extraordinária geração de que faz parte — Chianca de Garcia, Jorge Brum do Canto, António Lopes Ribeiro, Cottinelli Telmo, e outros de igual qualidade.

José Júlio Marques Leitão de Barros nasceu no Porto, filho de um Capitão-de-Mar-e-Guerra, mas foi registado em Lisboa, onde veio a morrer em 1967. Depois de tirar o Curso da Escola de Belas-Artes, foi Professor dos Liceus — o seu manual Elementos de História da Arte é ainda hoje uma referência —, e destacou-se como pintor, estando representado em vários Museus portugueses e estrangeiros. Por outro lado, como dramaturgo, escreveu várias peças que foram representadas no Teatro Nacional e noutras salas. Foi também jornalista em O SéculoA Capital e ABC, e fundou e dirigiu Domingo IlustradoNotícias Ilustrado e Século Ilustrado; ficaram ainda célebres as suas crónicas semanais no Diário de Notícias, sob o título «Os Corvos» (publicadas em dois volumes, com ilustrações de João Abel Manta). Organizou os cortejos históricos das Festas da Cidade de Lisboa (1934-1935) e foi Secretário-Geral da Exposição do Mundo Português (1940). Tudo isto, e muitas outras actividades de idêntica relevância.
Recuando agora ao seu debute cinematográfico, há que referir 1918 como o ano dos seus primeiros (quatro!) filmes, de que se destaca o infelizmente desaparecido Sidónio Pais — Proclamação do Presidente da República. No entanto, é preciso esperar por 1930, para assistirmos ao seu arranque em duas frentes, ainda no Cinema Mudo, com duas obras de enorme beleza plástica: a já referida Lisboa e Maria do Mar — filme este que marca presença, com exibições habituais, nas principais cinematecas europeias e que a nossa Cinemateca Portuguesa em boa hora restaurou e exibiu, em 2005, numa sessão onde se perfilaram dez pessoas (sim, eu estava lá com um par de alunos e vi com os meus próprios olhos!). Esta película tinha sido antecedida por Nazaré, Praia de Pescadores (1929), que cativou, de imediato, público e crítica — uma característica deste cineasta ao longo da sua extensa carreira, que coincidiu com uma época de profunda identificação dos portugueses com o seu Cinema.
O viveiro de todo este Novo Cinema, em pleno Estado Novo, seria a Brasileira do Chiado, os escritórios do São Luiz e do Trindade, e os estúdios da Tobis no Lumiar, de cuja fundação Leitão de Barros viria a ser um dos principais impulsionadores.
No início de 1929, Leitão de Barros e António Lopes Ribeiro partem em viagem, à descoberta dos principais estúdios de Cinema da Europa, onde conhecem e convivem com os maiores cineastas desse tempo — da Alemanha à Rússia…! Regressados à Pátria, Leitão de Barros lança-se na rodagem de Lisboa, Crónica Anedótica, a fita que hoje aqui trazemos, e que é um marco mundial na tendência europeia dos documentários poéticos, de matriz futurista, sobre a vida das grandes cidades, que tinha até aí em Berlim, Sinfonia de uma Capital (1926), de Walter Ruttmann, o seu mais alto expoente.
Lembremos aqui que Leitão de Barros, que trabalhava como professor de Desenho e Matemática (mais uma das suas aparentes contradições, mas expressão máxima da sua versatilidade criativa), era um nacionalista puro, sempre em busca da exaltação estética dos valores tradicionais de Portugal; conseguia extrair beleza da nossa Terra e do nosso Povo, numa linguagem moderna e apelativa. O seu apurado sentido de humor fazia-o evitar o ridículo e o mau-gosto (tão comuns na nossa burgessa e deslumbrada burguesia de hoje).
Homem de várias Vidas — pintor, professor, cineasta, jornalista, criador de grandes espectáculos —, foi no Cinema, porém, que encontrou o meio para explanar totalmente a sua Arte: estão aí A Severa (1930) — primeiro filme sonoro português —, As Pupilas do Senhor Reitor (1935), Bocage (1936), Ala-Arriba! (1942) — premiado no Festival de Veneza —, Inez de Castro (1944), Camões (1946), Vendaval Maravilhoso (1949), para o demonstrar, além de vários documentários, que são peças fundamentais para estudar a época histórica do Estado Novo.
Vamos então a Lisboa, Crónica Anedótica, que se faz tarde. Este filme é o mais autêntico documentário feito até hoje sobre a Capital; mas é também, ainda, muito mais do que isso: é uma fita onde aparecem os maiores actores da época — e de sempre?… — do Teatro e do Cinema de Portugal (Nascimento Fernandes, Beatriz Costa, Vasco Santana, Erico Braga, Chaby Pinheiro, Estevão Amarante, Josefina Silva, Eugénio Salvador, Adelina Abranches, Costinha, Alves da Cunha, e muitos outros… — caramba!). Todos eles interpretam personagens típicas de Lisboa, misturadas com as figurais reais do quotidiano da cidade.
Esta convincente articulação de realidade e ficção, de linguagem documental e fantasia, fazem desta obra um caso sério de inovação, qual precursora de fenómenos cinematográficos do pós-II Guerra Mundial, como o neo-realismo italiano. No caso da nossa Lisboa, o verismo antropológico conjuga-se com um requinte formal de artista sofisticado — Leitão de Barros era um esteta — e surge livre de visões marxistas, habitualmente transformadoras dos tipos sociais em estereótipos.
O filme avança em animado ritmo, com uma montagem que assegura a colagem dinâmica dos fragmentos — pitorescos, mas ao mesmo tempo poéticos — e cria um sentido para as imagens (magníficas, do grande operador Artur Costa de Macedo), ao som da Música de Frederico de Freitas, Juan Fabre e António Melo — interpretada ao vivo, pelas melhores orquestras, durante as projecções (Cinema Mudo oblige).
O que seria apenas um documentário, eleva-se, assim, à categoria de grande peça «cinegráfica» (na feliz expressão do meu Saudoso Mestre Luís de Pina, na sua História do Cinema Português).
Ao vermos este filme, sentimos a nostalgia de uma cidade branca, monumental, simples, luminosa, alegre, dinâmica, viva, habitada — com seus tipos genuínos —, com Alma! E, apetece-nos perguntar: — Por que será que agora Lisboa aparece sempre cinzenta e triste no Cinema Português a que temos direito e que pagamos com os nossos impostos?…
Lisboa, Crónica Anedótica apresenta-se, assim, como mais uma prova de que é possível alinhar Portugal com o «ar dos tempos» — a par de Ruttmann e Vertov, neste caso — sem abdicar da Identidade Nacional.
Veja-se e faça-se, em 2022, de novo!

João Marchante

segunda-feira, 21 de março de 2022

CINEMA EM LISBOA E LISBOA NO CINEMA

Manuel Maria da Costa Veiga inicia a sua actividade cinematográfica como exibidor de filmes estrangeiros em Lisboa. Embora residente em Algés, era uma típica figura da Capital na viragem do século XIX para o XX — dandy alto e espadaúdo, de farta mas cuidada barba à moda. Além do mais, era um curioso e especialista em mecânica e electricidade, o que lhe conferia uma aura de mágico, nesses tempos da iluminação a gás.

Costa Veiga ajudou Edwin Rousby na primeira exibição de imagens em movimento em Portugal, que decorreu no Real Coliseu da Rua da Palma (hoje desaparecido, para dar lugar a tristes pseudo-arquitectónicos caixotes pós-modernos); sessão essa que teve na assistência o Infante D. Afonso, irmão do Rei D. Carlos I, o que revela o empenho da Casa Real nas novidades científicas e artísticas que estavam a surgir, na Europa, na sequência da primeira apresentação pública — em Paris, a 28 de Dezembro de 1895 — de imagens captadas, reveladas e projectadas pelos irmãos Lumière, com a sua maravilhosa máquina Cinématographe.

A referida estreia lisboeta aconteceu em Junho de 1896 e nela foram projectadas fitas rodadas à volta do Mundo por operadores do pioneiro londrino Robert-William Paul. Foi um sucesso público, esta iniciativa do misterioso exibidor itinerante (húngaro ou americano, ninguém sabe) Edwin Rousby, «o electricista de Budapeste». Este, em Setembro, propicia nova sessão pública em Lisboa, agora com películas já filmadas no nosso País, pelo operador Harry Short, que Paul mandara para o sul da Europa à caça de imagens. A Cinemateca Portuguesa possui dois destes filmes: A Boca do Inferno e A Praia de Algés na Ocasião dos Banhos. Em Janeiro de 1897, Rousby parte definitivamente de Portugal, mas deixa em Lisboa a semente da cinefilia.

Depois deste flashback, para enquadramento histórico da aparição do Cinema («Animatógrafo», nas palavras de então) em Lisboa, vamos ao nosso pioneiro: Costa Veiga, após várias tentativas falhadas nesse sentido, conseguiu estabelecer-se como exibidor, inaugurando o Éden Concerto, aos Restauradores, e a Esplanada D. Luiz Filipe, em Cascais. Não tardou, no entanto, a dar o salto para a produção de filmes. Assim, aproveitando a estada sazonal do Rei D. Carlos em Cascais, no Verão de 1899, filma-o na praia, capta mais algumas vistas da então famosa estância balnear, e, finalmente, apresenta a sua primeira fita: Aspectos da Praia de Cascais.

Foi o início de uma carreira de grande actividade como documentarista (palavra e conceito inexistentes à época, mas é disso que já se trata), que atravessará toda a primeira década do século XX, registando os principais acontecimentos sociais e políticos, com a sua câmara inglesa Urban.

As vindas a Portugal de Chefes de Estado, e outras altas figuras, não lhe escaparam; e, temos, assim, a Série — interessante e fundamental para a compreensão da História da Europa — «Visitas a Lisboa»: Eduardo VII (1903), Afonso XIII (1903), Duques de Connaught (1903) Imperador da Alemanha Guilherme II (1905), Presidente de França Émile Loubet (1905), Rei de Saxe (1908).

Por este motivo, ficou conhecido por «Cineasta dos Reis», em oposição jocosa ao seu contemporâneo Aurélio da Paz dos Reis, «o Reis Cineasta», do Porto — primeiro português a dar à manivela numa câmara de filmar; e, revolucionário republicano, por sinal… Deste, falaremos noutro dia.

Entretanto, Costa Veiga fundou uma empresa produtora de Cinema — Portugal Filme —, continuando ainda a sua actividade profissional nos ramos da exibição e distribuição de fitas. Descobriu também, para o Cinema Português, Artur Costa de Macedo, que viria a ser um dos nossos melhores directores de fotografia, decisivo na Época de Ouro do Cinema Português (décadas de 1930 e 1940), e que trabalhava antes na garagem Auto-Palace, ao Rato.

Num tempo muito anterior ao advento da Televisão, era através do Cinema que os Estados comunicavam com os seus cidadãos e passavam para o exterior as imagens do País. Neste contexto, os filmes de Costa Veiga fizeram parte de uma grande e última ofensiva diplomática da Monarquia Portuguesa. A já referida Série «Visitas a Lisboa» foi distribuída por toda a Europa, com o apoio do Rei D. Carlos, mostrando Lisboa, como capital cosmopolita, acolhendo as principais figuras políticas internacionais.

Note-se que os filmes, embora numa fase embrionária da Sétima Arte — em formato de curtas-metragens, a preto-e-branco, mudos —, eram um negócio rentável; e, Costa Veiga pôde enriquecer com a produção, distribuição e exibição de películas, despertando, desta maneira, o apetite de muitos outros para esta indústria, os quais não tardaram a aparecer, em força, em Lisboa.

Sendo Costa Veiga «O Cineasta dos Reis», de facto, pode também dizer-se que a sua carreira sofre um grande abalo com o terrível Regicídio de 1 de Fevereiro de 1908 no Terreiro do Paço. Temos assim — simbolicamente — como uma das últimas obras do realizador: Os Funerais de S. M. El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luiz Filipe (1908).

Passados 114 anos sobre o cobarde crime que foi o assassinato à traição do Chefe de Estado no Terreiro do Paço a 1 de Fevereiro de 1908, não será a hora de se desenterrarem e exibirem os filmes do pioneiro lisboeta — do Cinema Nacional — Manuel Maria da Costa Veiga?

João Marchante